Por Flávio Lazzarin
Caro frei Betto, li com atenção e interesse as considerações que fizeste após o 12º Encontro Nacional do Movimento Fé e Política, em Belo Horizonte 5-7 de abril de 2024.
É verdade: a nossa geração envelheceu, mas, diante de tantos cabelos brancos, que caracterizam os eventos que reúnem quem ainda acredita e aposta numa caminhada libertadora, nos perguntamos justamente se também nossas ideias, propostas e utopias envelheceram junto conosco.
Em suma: se foram as inserções no meio popular e as lutas por vida e dignidade e sobrou somente uma narrativa, cada vez mais ideológica e sem capacidade de seduzir e convencer as novas gerações?
Frequentemente, numa séria perspectiva autocrítica, me parece descobrir na nossa trajetória uma tendência a repetir práticas pastorais e políticas, que já deram certo, mas que não correspondem mais às silenciosas e prepotentes demandas que surgem da realidade social.
Assim nas nossas mãos inermes e paralisadas sobram só os discursos, que nos obstinamos a chamar de profecias. A história mudou e mudou também a gente, mas, às vezes, nos isolamos numa redoma opaca e embaçada.
A história mudou certamente quando, em três décadas de inverno eclesial, os legados proféticos do Vaticano II e de Medellín – “o novo jeito de toda a Igreja ser” – foram varridos do panorama eclesial em toda América Latina e confinaram na clandestinidade a pastoral libertadora. Traição restauracionista, que não foi fruto somente da cumplicidade clerical e que se reapresenta hoje, inspiradora e aliada do neofascismo, na pequena primavera do solitário papa Francisco.
Mas pensar em lamentações intereclesiais é, com certeza, um equívoco imperdoável. Seria muito simplório ignorar todas as transformações da sociedade brasileira nestes últimos cinquenta anos. Não se trata somente de mudanças de superfície devido às maquiagens modernizadoras do mercado, do consumo, das novas tecnologias: a televisão, num primeiro momento, e a revolução digital sucessivamente.
A avalanche das mudanças históricas – fala-se hoje, apropriadamente, de mudança de época – atingiu sobretudo e irreversivelmente as subjetividades, as emoções, os sentimentos, as mentalidades, os pensamentos das pessoas.
Desconhecer as mudanças não significa somente renunciar a entender a realidade, mas, sobretudo, sabotar a construção de autênticas relações humanas e eclesiais. E renunciar ao discernimento pastoral. E renunciar ao discernimento político.
Parece-me que, nestas últimas três décadas, o nosso sonho político foi progressivamente transformado, com a substituição de antigos atores e a irrupção de novos protagonistas no cenário das lutas populares.
Mudaram também as inspirações ideológicas e espirituais: o papel das teologias da libertação e o testemunho profético de bispos e comunidades de base, que enfrentavam a ditadura empresarial-militar, passou a ser realizado pela insurgência dos povos originários, quilombolas, ribeirinhos, comunidades rurais e urbanas, que ressuscitam retomadas não só de territórios, mas também de espiritualidades e ancestralidades. Lutas minoritárias e frágeis, mas indiscutíveis profecias existenciais, que denunciam os males da nossa crise civilizacional e apontam para estratégias de salvação da vida e da humanidade. Pequenos rebanhos, sobras de uma luta que nos parecia ser bem maior. Sementes.
Em suma, sem querer absolutamente esquecer o irrepetível testemunho fecundo da fidelidade dos nossos profetas e mártires da libertação, hoje o carisma da profecia não está mais confinado em âmbito eclesial e se encontra na prática e na palavra de figuras como Davi Kopenava Yanomami e Nego Bispo.
Devo te dizer também que estou parcialmente de acordo contigo quando afirmas que “a queda do Muro de Berlim abalou as nossas esperanças em um mundo onde todos teriam a sua existência dignamente”. Com certeza é o surpreendente evento central do século passado, que não somente reembaralhou as cartas mas trocou o próprio baralho e as regras do jogo da história, mas as tragédias da atualidade revelam que esta crise irreversível, crise que não pode ser imputada simplesmente às ingenuidades e equívocos políticos da nossa geração, é a crise do Ocidente, de que, pelo avesso, nós também, na Abya Ayala, fazemos parte.
Trata-se de outros “pecados originários”, que nos levaram novamente para novas guerras, fundamentalismos e fascismos.
Assistimos assim aos capítulos finais do processo de derrota das presunções iluministas de governar o mundo e resolver todos os seus problemas em alternativa radical às superstições religiosas. A promessa do triunfo da razão contra os absolutismos dos impérios e das cristandades não se realizou e, em vez, de solucionar contradições e conflitos, chegou-se a multiplicá-los, até ameaçando de morte a própria vida da Terra.
Claro, portanto, que a culpa não é da nossa geração dos cabelos brancos, embora não possamos fugir da ontologia ocidental que marcou as nossas biografias. E não se trata também de um mero conflito entre velhas e novas gerações. Reduzir a crise à biologia ou ao tamanho das nossas pobres biografias não pode ser atitude aceitável.
Não posso esquecer que a laicidade do Estado seria algo de ainda precioso da herança revolucionária de 1789, mas esta concepção está sendo varrida, também no Brasil. Os defensores do Estado de direito, da democracia, do espirito republicano estão ab immemorabili obrigados a se orientar nas eleições guiados pelo princípio do mal menor e não do bem possível. E, mais do que isto, tenho a impressão que as pessoas, que no mundo tentam viver ética e, politicamente, a serviço da fraternidade e da justiça, também são candidatas a serem eliminadas. São e serão tidas como ‘danos colaterais’ de um sistema de imperialismos concorrentes, em que a própria esquerda é obsoleta, dividida e impotente.
E a nossa Igreja Católica tão orgânica à civilização ocidental? Acredito que não possa fingir que a crise do Ocidente não lhe diga respeito.
Ela não conseguirá embaralhar novamente as cartas para participar do jogo, mas a nossa Igreja pode encontrar em Jesus de Nazaré o segredo para enfrentar os poderes violentos deste mundo: a kenosis, o divino extremo esvaziamento da humanidade de Jesus, que nos apresenta um Deus fraco, impotente, sem autoridade. Kenosis que se identifica com ágape, revelada em plenitude na crucificação. Ágape que derrota definitivamente e sem violência até as violências das religiões.
Um abraço fraterno,
Flávio, presbítero fidei donum.